domingo, 6 de janeiro de 2008

Déesse

Elena Obraztsova foi uma mulher belíssima. Todos esperavam vê-la deste modo, como se o tempo não envelhecesse os montros. Um edema nas cordas vocais; uma consulta desesperada a um especialista do Einstein; um Achile Picchi sentado ao piano, flores na ribalta. Teria ela escapado à idade? Recuperado a voz como se não tivesse necessidade dela?
Madame Obraztsova entrou meio arqueada, os cabelos desgrenhados e louros à la Duquesa de Alba. Parecia uma boneca russa. De cêra, envelhecida, meio mal-humorada, com um salto incômodo. Colocou-se ao lado do piano, atrás da estante da partitura sem o charme característico dos eslavos. Deitou um lenço sobre o piano, parecia disposta a tossir sem constrangimentos.
Chanson. Espera-se um pouco de graça dessas pecinhas, cantores lançam-se ao repertório de canções quando já não podem dar tanto de si à ópera, fazem-no muitas vezes já envelhecidos, cansados. Mas canções, lieder, chansons constituem um edifício peculiar pelo tamanho e importância. Como um pequeno palácio, como Sans Souci, de nome francês fora da França, nada de Versailles, nada parecido com nada, só que magnífico, lindo, pitoresco até. Assim é a canção, e talvez por isso os velhos o façam: aparentemente um repertório fácil para uma voz cansada, mas cheia de significados que se mexem e escondem-se com a eventual rapidez de menos de um minuto.
Reynaldo Hahn, Satie e Tosti. Hum, não estou certo, mas que voz, mas que voz, que voz.... Que timbre lindo. Cof, cof, cof(alguém sugere outra onomatopéia para tosse?). Eventualmente peças de menos de um minuto e cof. Voz magnífica, cheíssima, graves lindos. Agudos difíceis? Claro, a mulher é mezzo, têve um edema nas cordas vocais, deu três masterclasses onde insistiu cantar a plena voce. Cof de cá, de lá, porquê a platéia sempre interage tossindo. Mas Elena tossia mais e mais e mais. "Ai tadinha, dá uma água para ela". Água? quero ouvi-la tossir muito mais, tossindo desse jeito, tossindo atrás da estante, entre o piano e o desespero e enchendo aquela sala.
Intervalo.
Ópera. O templo dessas mulheres. Cantar é uma coisa, cantar lied é outra, chanson outra, em francês. Cantar uma missa, cantar uma modinha. Mas cantar ópera é de uma bizzarice terrível. Christa Ludwig dizia achar muito estranho um gênero onde um fulano canta "Passe-me a manteiga por favor". Madame Obraztsova não cantou que ninguém lhe passasse a manteiga, mas a Dalila foi deslumbrante, e se aquele clamava pela manteiga essa aqui seduz o tal Sansão para adormecê-lo e roubar-lhe a força. Naturalmente o edema continuava ali, devia estar muito constrangido pela tenacidade da mulher, que incorporou suas deficiências e fez uma Dalila menos luxuriante que determinada.
Ária de uma ópera russa, língua da madame. Eu gosto de Korsakov, mas desconheço essa "A noiva do Tsar", a nossa estrela cantando em sua língua de origem. E acaso eu entendo russo? Passemos adiante, porque se alguém lhe admirar a pronúncia eu vou concordar e ponto.
Cena da Condessa, de "A Dama de Espadas" do Tchaikosky, esse príncipe triste como Schumann, ainda hoje injustiçado. Meu Deus, ela tirou a estante da frente. É claro, isso ela já cantou mil vezes, sabe de cor. Afastou-se do piano e tossiu. Passa mal naturalmente. Vai fazer uma reverência e deixar o palco. O maestro começa, xi, ela treme, meu deus, como treme a madame. É a condessa quem treme? Russo. E Elena incorpora a idade avançada, exagera os trejeitos comuns a uma senhora russa ou japonesa. Quando fala do amor, do passado, dessas madeleines enfim, Elena, a Condessa, cantam em francês. Neste momento a música é meio patética, meio "en recherche". Madame Obraztsova arrisca uns passinhos que a juventude da personagem deve ter aprendido em Petersburgo, ou seria um minueto? N'importe pas. O que esta mulher fez neste momento foi quase um milagre e digo-o com a franqueza de um devoto. Afastando a partitura e o piano e colocando-se mais ao centro do palco ela criou a atmosfera da grande ópera, como se estivéssemos diante da jovem Elena em qualquer grande teatro, crispando o rosto para envelhecer aquela beleza que agora mostrava-se irresistível. E foi adiante, porque imediatamente não estávamos no Scala ou no Met, mas dentro da ópera, como se Tchaikovsky fosse um deus maluco que compunha a nossa trilha sonora diariamente. Isso é grande teatro. Acho que nunca vi uma platéia tão entusiasmada. Ainda que os balcões superiores não fizessem chover cravos vermelhos como certa vez com Callas em Lucia eu já podia ver Madame la Déesse tendo de abaixar-se para apanhá-los.
Eu mencionei a beleza do timbre de Elena. Quando se cantam árias tão conhecidas quanto as de Carmen é previsível que o intérprete o faça bem, quer pela relativa facilidade do papel, quer por um esforço da vaidade em tentar superar todos os milhões de cantores que já o interpretaram antes. Neste ponto Obraztsova saiu-se bem em dois aspectos: a beleza do timbre e a dramaticidade natural. Parecíamos estar diante de uma Carmen estarrecida e resignada com a morte anunciada pelas cartas que não mentem nunca.
L'amour est........ até eu que sou um entusiasta resignado acho difícil suportar essa ária. Hum, hum. Quantos anos tem Elena? Ela é russa mesmo? Mas que sensualidade. Já sei........ E aquele gênio confirmou-se ali. Obraztsova tem estatura mediana, idade indefinida, cara de russa, cabelos louros e desgrenhados e não portava nenhum cliché da cultura espanhola ou cigana. Ela flexionou um pouco a perna esquerda. "qui n'a jamais, jamais connu de loi....." uma flexão ligeira da perna esquerda, o joelho pela primeira vez marcando o vestido. Ela é meio gordota, façamos justiça, até agora não lhe foi exigido nenhum atributo explicitamente feminino.
"si je t'aime, prends........." Mon dieu, pensei eu, fôsse aquilo consciente ou não era genial. Genial, callasista. Ela flexionou a perna para criar uma silhueta mais magra, ficou acinturada, com curvas, sensual enfim.Carmen. Nenhum talento narrativo jamais vai dar conta de explicar o que eu vi e senti com aquilo.
Ah, quel diner, a famosa ária de "La Périchole". A personagem está bêbada, divertida, bebeu champagne. Elena cantou de novo sem partitura, a voz quente, ágil. Que comicidade, que senso teatral, e que voz!
Bis? não, deixem-na ir embora. Edema na corda vocal, masterclasses a plena voce, tempo insalubre em São Paulo. Ela voltou sob aplausos óbvios. Um bis. Dois Bis(?) Sim, dois, porque ela e o público enamoraram-se. O maestro levantou. Elena fez uma reverência e disse, em russo ou francês "Volte". A platéia sentou e ouviu o terceiro bis daquela que tinha acordado sem voz e cheia de cof cofs.

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